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Thursday, October 07, 2004

As Vozes (com letra maiúscula) 

Celebra-se agora meia década sobre o desaparecimento de Amália Rodrigues, a Voz de Portugal, a nossa Voz.
Amália foi durante anos e será eternamente o rosto da música portuguesa. Abençoada com uma voz divinal, apenas predestinada aos escolhidos, foi ela quem personificou a saudade, esse sentimento tão português, e eternizou o fado, na altura em que este ainda era genuíno - o fado parece ter entrado num beco sem saída, um pouco como aconteceu com o punk; tudo o que apareça agora, por mais qualidade que tenha, parecerá sempre deslocado e artificial. Mas isto é tema para outra crónica.

Amália Rodrigues era aquilo a que chamo uma Voz (com letra maiúscula). Apesar deste epíteto ser atribuído a Frank Sinatra, tal não faz dele espécime único dessa categoria de músicos; fará dele, talvez, o líder de uma vasta equipa.
Com efeito, se as Vozes ao longo do tempo se reunissem numa equipa de futebol, qual constelação de estrelas, qual Real Madrid versão maré alta, esta seria capitaneada pela voz de Frank Sinatra. A escolha seria, certamente, maioritária; mas não seria a minha escolha. Apesar da sua voz ímpar, nunca fui grande apreciador daquela sua faceta de quem parece não levar as coisas a sério - e quando penso nisto, vem-me sempre à memória aquele famoso dueto em Love Me Tender, com Elvis Presley.

Por vezes, as Vozes podem ser confundidas com os cantautores. Mas as semelhanças entre uns e outros não são absolutamente nenhumas, são como a água e o azeite. É que nas Vozes, é a voz o centro gravítico da música; estes podem-se dar ao luxo de não escrever as canções; tudo o que é escrito para eles ou tudo o que roubam (leia-se pedem emprestado) a outros, parecem genuinamente deles, quando cantadas. Fazem até do sofrimento dos outros o seu.
Por sua vez, os songwriters são antes de mais, poetas. Cantam as suas histórias e passam as suas mensagens. Podem não ser os melhores cantores da cidade (alguém mencionou Bob Dylan?), mas são os melhores compositores das redondezas.

Numa entrevista publicada esta semana que passou, no suplemente semanal Y, Tom Waits perguntava a Kathleen Gomes quem procurava arrecadar de Amália, a coroa de raínha do fado. Tom Waits é também uma Voz. Talvez começasse no banco, se as vozes formassem mesmo a tal equipa de futebol. Mas é uma Voz diferente das já atrás mencionadas. E Tom Waits é também um contador de histórias.
A sua voz não faz chorar as pedras da calçada, mas nem por isso deixa de despoletar paixões. A sua voz de quem trocou a água pelo whisky, enquanto néctar da vida, é uma buzina reveladora, provando que não é necessário ser agraciado com uma voz dentro dos cânones estéticos aprovados por um juri dos Ídolos para ser uma Voz. Basta ter, não uma voz, mas A voz.
Por isso, as estórias de Waits, quer sejam sobre Carnaval, marinheiros, amor ou tartarugas, serão sempre algo superior. Serão sempre narrativas divinais, de anjos descidos à Terra sob disfarce carnal.

E se Deus descesse à Terra? Se esta suposição se transformasse num facto, Deus necessitaria de um arauto para ser a sua voz, ao dirigir-se a nós, meros mortais. Para isso, certamente recrutaria uma Voz. E essa Voz seria Johnny Cash.
O Homem de Negro não podia ser deste planeta; aquela voz gutural não podia ser humana. Ele era uma Voz sobre as Vozes. Na minha opinião, além de porta-voz de Deus, seria ainda o capitão das Vozes, versão equipa de futebol.
Johnny Cash é A Voz e um contador de histórias. A maneira como alia estes dois dons chega a ser arrepiante. Ao ouvimo-lo cantar, captamos toda a sua paixão, a sua sinceridade e o seu estado de espírito. Haverá algo mais terrivelmente credível do que Cash ao amaldiçoar Damn your eyes, quando canta Sam Hall, ou algo mais aterradoramente arrepiante do que Cash ao anunciar a vinda do Homem em The Man Comes Around?
Cash era um livro aberto quando cantava. A versão oficial diz que o Homem de Negro faleceu vítima de doença prolongada, mas os seus amigos dizem que pereceu às mãos do desgosto de ter perdido a sua esposa anos antes. Claro que esta segunda versão é a correcta; podemos atestar a sua veracidade através da debilidade emocional na voz de Cash nos quatro volumes que gravou na sua última de vida.

Todas estas linhas, apenas para introduzir o regresso de duas Vozes femininas (sim, também a Voz Tom Waits está de regresso, com o álbum Real Gone); duas Vozes que têm resistido ao passar dos anos, cada vez com mais charme, provando que as Vozes são intemporais. uas Vozes que ao longo dos decénios têm feito seus os prantos dos outros. São elas, Mariane Faithfull, com Before The Poison e Nancy Sinatra, com um álbum homónimo. Ambas recrutaram personalidades de referência em dois álbuns que merecem umas audições cuidadas.

E as Vozes continuarão a ouvir-se, fazendo-se anunciar por clarins divinos, rompendo as gerações em direcção aos legendários anais da história. Fazendo as pedras chorar e despoletando paixões.


[Banda Sonora - The Man Comes Around; American Records Vol. IV; 2002]


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