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Tuesday, October 26, 2004

As estrelas rock só deviam parar quando morressem... 

...ou quando se afogassem no próprio vómito.



Os Rolling Stones voltam à estrada em 2006. Ao que parece, estão sedosos por voltar a pisar os palcos e nada melhor do que lançar um álbum novo para isso acontecer.
E a estreia parece estar marcada para a inauguração do novo estádio de Wembley. Se calhar é melhor começar já a poupar dinheiro para a viagem...

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Friday, October 22, 2004

A alquimia na infância ou Como Romeu e Julieta é a maior história de amor de sempre 

Lembro-me perfeitamente da altura em que comecei a ouvir música, minimamente interesseado. Por ocorrências familiares, fui daqueles que tive o previlégio de ter saltado a fase dos Onda Choc e dos Ministars; devido às influências do meu irmão, mais velho, descobri o meu primeiro álbum de música no final dos anos 80. Era ainda sob o formato de cassete audio (só anos mais tarde comprei o vinil) e a capa foi deste o primeiro momento de contacto visual, cativante: um vulto escondido na escuridão, onde só se distinguia um casaco azul, dois punhos e uma fita para a cabeça fuorescentes e umas mãos segurando uma guitarra. E no canto superior esquerdo as letras dIRE sTRAITS, que eu ainda não conseguia ler, mas que já conseguia identificar.
O álbum era a compilação Money For Nothing e soou em minha casa por bastante tempo, quer fosse na aparelhagem da sala, quer fosse no walkman cinzento da Sanyo que eu roubava ao meu irmão. Venerava o solo inicial da música cujo título baptizava o álbum, o groove de Twisting By The Pool, a calma tranquilizadora de Brothers In Arms e o amor inerente de Romeo And Juliet.
Claro que isto foram tudo adjectivos que só anos mais tarde consegui identificar entre os meus sentimentos em relação á música da banda de Mark Knopfler (que consequentemente, foi o meu primeiro ídolo musical); na altura, a minha paixão pelos Dire Straits era de uma ingenuidade honesta, o que hoje me faz recordar grande parte da minha infância ao escutar muitos dos temas da banda inglesa.



Formados ainda nos anos 70, os Dire Straits foram no entanto, uma das grandes bandas dos anos 80. Musicalmente nascidos sobre o signo da guitarra, foram uma lufada de ar fresco por entre o panorama musical contemporâneo, que de um lado tinha o enfadonho rock progressivo dos Yes e dos Genesis e que do outro tinha os bandos de miúdos rebeldes, que seguiam a linha punk dos Sex Pistols. Visto sobre certo ponto de vista, os Dire Straits eram como um oásis no meio do deserto.

O nome Dire Straits quase se confunde com o nome de Mark Knopfler, o líder vocalista da banda, guitarrista virtuoso de referência. No entanto, como podemos comprovar pelas actuais evidências (e está já nos escaparates Shangri-la), essa confusão entre Knopfler e a sua banda não podia ser mais errada - Knopfler não era a banda, o que se pode comprovar pela sua actual monocórdica carreira a solo.

Antes do genial Brothers In Arms, os Dire Straits tinham já encetado uma carreira discográfica dbastante boa, recheada de singles de sucesso. Apoiada na herança blues/rock, inovada pela onda dos anos 70, os Dire Straits souberam inovar e adaptar-se aos anos 80 como ninguém, tornando-se uma das maiores referências do rock ligeiro.
Depois de uns últimos anos de carreira mais duvidosos, tiveram o canto de cisne em 1993, ao lançarem o segundo álbum ao vivo, On The Night.

On The Night veio provar porque foram os Dire Straits uma das bandas de estádio mais interessantes de sempre e uma das melhores bandas da história da música, sob o ponto de vista musical. Não era só o virtuosismo de Mark Knopfler que encantava; toda a banda era sublime - e On The Night tem o início mais espectacular da história dos álbuns ao vivo.

O álbum abre com Calling Elvis, single da fase descendente da banda; introdução arrasadora, sob a forma da virtuosa guitarra e Knopfler, com uma primeira abordagem ao mar de gente que assistia, cujas manifestações são arrepiantes. Calling Elvis inicia um despique genial entre as guitarras da banda e o cativante órgão, que vai introduzir uma injecção de boa disposição, cujo hammond inicial e o incentivo do anfitrião Mark Knopfler só podem significar uma enorme quantidade de saltos, braços no ar e cabeças a balançar. São cinco minutos que passam a correr e quando damos por nós, está a bateria de Pick Withers a marcar o ritmo para os riffs cortantes de Knopfler fazerem um dos melhores momentos rock registados oficialmente em disco. Musicalmente perfeita, Heavy Fuel dá entrada à maior música de amor de sempre. Romeo And Juliet faz juz à sua condizente literária e é um hino à música romântica, às baladas e ao soft rock.
Romeo And Juliet tem um início e um final de saxofone apaixonante, uma letra e uma interpretação vocal magistral e a prestação musical conjunta mais perfeita que há memória.

É Romeo And Juliet a declaração de amor concreta aos Dire Straits. É o rock vestido de mulher. Porque a primeira paixão nunca se esquece!


<[Banda Sonora - Romeo And Juliet; On The Night; 1993]


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Sunday, October 17, 2004

O álbum ou Os discos da minha vida (I) 

INTRODUÇÃO
O objectivo de um álbum é completamente diferente do de uma música.
Se uma canção procura responder aos instintos e intuitos inerentes de três ou quatro minutos de melodia, por sua vez o álbum é uma capa que tapa ou destapa o conceito da unidade formada por aquele alinhamente de músicas.
O primeiro caso de entendimento do álbum enquanto álbum e não enquanto compilação de algumas músicas, foi Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e é ainda um dos casos de maior sucesso geral. Há ainda outro caso gritante que é The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars, de David Bowie. No entanto, estes dois albuns são dois casos bastante particulares, uma vez que recorrem a desígnios fora do contexto musical.
No entanto, existem álbuns que acabam por suprir todas as lacunas de uma mera compilação de temas sem artifícios folclóricos. São álbuns que cumprem todo o objectivo de um álbum, apenas e só com os seus atributos musicais. E normalmente, são estes muitos dos discos da nossa vida!

Os discos das nossas vidas são aqueles que se colam inexplicavelmente ao prato do gira-discos; são aqueles de que não nos privamos de ouvir por inteiro, todos os dias; são aqueles dos quais fazemos questão de saber de cor todas as letras da primeira à última faixa; e são aqueles que nos acompanham por toda a vida, juntos com os álbuns perenes e adequados à estação.

Todas estas linhas apenas para introduzir um espaço, que bem pode vir a transformar-se numa crónica periódica, intitulada Os discos da minha vida, onde me proponho a dissecar alguns daqueles álbuns (é favor colocar todo o ênfase em "daqueles", quando lido).
E hoje, o álbum em causa é American IV - The Man Comes Around, de Johnny Cash.

Já aqui falei anteriormente, do meu fascínio pelo Homem de Negro e expliquei porque é ele uma Voz (com letra maíúscula) e o próprio arauto de Deus, se Este um dia descer à terra e se dirigir a nós, mortais.
Contextualizando um pouco, The Man Comes Around encerrou duas etapas na vida de Cash: a primeira, de colaboração com o produtor Rick Rubin, a qual se traduziu numa empresa de quatro álbuns (a American Collection), onde Rubin voltou a colocar Cash no topo da montanha discográfica, revitalizando a sua música; e a segunda, que encerrou a sua luta contra a doença terminal e contra o desgosto resultante do falecimento da sua esposa.
Ainda antes de começar a análise, há ainda de referir alguns pormenores relativos ao álbum. Nele, é bem audível o estado de debilidade física e psicológica de Cash, devido à fase terminal da doença e ao desgosto provocado pelo seu estado de viúvo, o que transforma o disco em algo bastante forte, sentimentalmente falando, uma vez que a dor na voz de Cash é palpável (para quem não acreditar, basta ver o videoclipe de Hurt, o single de apresentação do álbum). Outro pormenor pertinente é que American IV é, sobretudo, um álbum de covers. No entanto, como a extraordinária Voz que era, Johnny Cash recruta para si músicas de outros, dando-lhes significado e transmitindo-lhe a sua dor, parecendo que todos aqueles prantos são seus.
Posto isto, passemos à dissecação do álbum.

DESENVOLVIMENTO:

[Johnny Cash - American IV; The Man Comes Around; 2002]


O álbum inicia com The Man Comes Around. E não podia iniciar de melhor forma. Com efeito, a faixa de abertura é algo bíblico, algo grandioso, que apesar de ser apenas baseado, podia muito bem ser uma passagem da própria Bíblia. Nela, Cash personifica o tal arauto de Deus, que anuncia a sua vinda, com a sua voz de trovão. É uma música que comprova todo o seu amor por Deus e pela música.
O segundo tema é o inesperado Hurt, tema original dos Nine Inch Nails e respectivamente, o primeiro cover do álbum. Hurt é aquele tema, que para quem não sabe, passa muito bem por original de Johnny Cash. A dor com que o Homem de Negro a canta é o dobro ou o triplo da dor de Trent Reznor. E para quem ainda tem dúvidas, basta ver o teledisco.
Give My Love To Rose faz então a ponte para mais uma versão. Desta vez, é a balada lamechas de um grande sucesso de tempos idos, da dupla Simon & Garfunkel: é ela Bridge Over Troubled Waters. Cash não está sozinho - Fiona Apple acompanha-o do outro lado do microfone - mas arrebata toda a canção para si, dando-lhe pela primeira vez sentido aquele silogismo medonho da ponte sobre águas turbulentas(?).
A faixa cinco encerra um dos momentos altos do disco. Pegando numa vulgar música de Sting, Johnny Cash exorcisa um fantasma que adopta como filho legítimo, numa narração/declamação cantada de sentimentos e emoções altos. Genial!
Logo de seguida, First Time Ever I Saw Your Face apresenta-se segundo duas condições: por um lado, é a ponte para o segundo momento alto do álbum e por outro é a prova de que Cash era uma Voz ímpar, interpretando uma tradicional canção romântica, geralmente celebrizada por vozes femininas, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E chega então o segundo momento alto do disco. Johnny Cash está-se nas tintas se em 90% das vezes, as versões são sempre inferiores aos originais e volta a surpreender. Pegando de frente o fantástico Personal Jesus, dos Depeche Mode, Cash veste-o com novas roupas, que nunca lhe ficaram tão bem. E ainda faz suas, as mãos de John Frusciante.
É aqui o ponto alto do trajecto ascendente do álbum; a partir daqui, mantem-se constante, em linha recta até ao término. Primeiro, com In My Life, dos Beatles. E depois com o fabuloso Sam Hall, onde o Homem de Negro volta a descarregar toda a sua fúria que a sua voz comporta, quando grita damn your eyes (o incrível e paradoxal é que ele não precisava sequer de gritar para parecer estar a fazer explodir os próprios pulmões).
Talvez seja o rearranjo do tradicional Danny Boy, o ponto menos alto do disco, mas a parceria com Don Healey em Desperado, logo a seguir, faz esquecer possíveis percalços. E depois há Nick Cave em dueto com Cash, no original de Hank Williams, I'm So Lonesome I Could Cry - atributos demais para só por si tornarem a faixa doze memorável.
Até ao final, Cash ainda rearranja o tradicional Streets Of Laredo, canta Tear Stained Letter e termina com o festivo We'll Meet Again. Presságio? Esperemos que sim.

E a seguir só o silêncio. Nada que uma nova audição não resolva...

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Friday, October 15, 2004

Mortos ou vivos? 

Celebrando um quarto de século de carreira, aqueles cujo primeiro nome terá sido Beijinhos & Parabéns e que há vinte e cinco anos se estreavam em palco numa curta actuação nos Alunos De Apolo, maracram a data com um espectáculo duplo no Pavilhão Atlântico, neste fim-de-semana que passou.
Estou a falar, claro, dos Xutos & Pontapés.

Os concertos (pelo menos o de sexta-feira) confirmou as piores expectativas acerca das capacidades sonoras do Pavilhão Atlântico - ao fim de quatro músicas as guitarras continuavam a baralharem-se, o que se ouvia da bateria era o seu som natural, o saxofone mantinha-se inexistentemente sonoro e Tim bem mexia os lábios em frente ao microfone, mas nada se ouvia.
Mas não é isto que interessa, já que estas linhas são dedicadas por inteiro aos Xutos & Pontapés, a mairo banda de rock portuguesa.

Obstante este título (e junto também, ao recente de comendadores nacionais) a pergunta é simples: estarão os Xutos & Pontapés obsoletos?

Os Xutos irromperam há vinte e cinco anos atrás pela música portuguesa adentro, ameaçando a hemogenia do disco e propalando o punk-rock aos sete ventos. De blusão de cabedal e calças de ganga rasgadas, os Xutos impuseram-se rápida e facilmente pela sua atitude. Marca de uma geração e rosto de uma nova faceta musical que então imergira, os Xutos inovaram o rock português.

Mas quase três gerações mudam muita coisa e muita gente. Dos blusões de cabedal e das calças de ganga rotas, apenas sobraram os lenços vermelhos nos pulsos. Os Xutos já não são aquele grupo de jovens rebeldes e até já têm abelos brancos.
Três gerações também é muito tempo, musicalmente falando. Os Xutos fizeram muito pela música e sabem que o mainstreaming é uma ameaça deveras perigosa para os músicos. E sabem que XIII é um disco menor, principalmente quando têm na discografia obras maiores como Cerco ou Gritos Mudos.

Então porque continuam os Xutos a encher recintos, como na sexta-feira, no Pavilhão Atlântico?
Simples! Porque são autênticas forças da natureza, verdadeiros animais de palco. É um facto que já não têm a força e a irreverência de há vinte e cinco anos e é um facto que é o público que faz agora grande parte dos seus concertos. Mas continuam a encher o palco e o público continua a captar toda a cumplicidade inerente que o quinteto selou com o grande público há vinte e cinco anos atrás. É um dos casamentos melhores sucedidos da his´tória da música, não só dentro de portas, mas também fora delas.
É que os Xutos podem já ter cabelos brancos, filhos e até netos, mas continuam a ser os mesmos. Continuam a cantar Olá oh vida malvada com o mesmo entusiamos de quem vai pegar na guitarra e fazer-se à estrada; continuam a chamar Maria com o mesmo amor; Tim continua com a mesma alegria de sempre em cima de palco; Zé Pedro mantém o seu estilo de uma beleza degradante à Keith Richards, de quem ama a guitarra; João Cabeleira continua igual a si mesmo, imperturbável, de cigarro ao canto da boca; Gui está sempre no sítio certo na hora certa; e Kalu continua a amaldiçoar a puta da minha vida com a mesma irreverência e a embarcar no crowdsurfing como quando via os The Clash.

Os Xutos têm consciência do compromisso que têm para com milhares de portugueses e é por isso que Mundo Ao Contrário é um digno álbum da banda. Não tem o encanto de obras póstumas, mas volta a ser Xutos & Pontapés. É certo que já conhecemos todas as músicas mesmo antes de as ouvirmos, mas é sempre bom decorarmos novos temas para serem cantados a mil vozes nos concertos, quais compilações ao vivo dos grandes êxitos de duas décadas e meia de carreira.
Os Xutos já viram tudo e já fizeram tudo, como canta Zé Pedro em Submissão; não imitam ninguém nem prestam contas a quem quer que seja - é um estatuto que a longevidade permite. Por isso, têm todo o direito de se manterem activos, iguais a si mesmo, copiando-se a si próprios (se dezenas de bandas portuguesas os copiam, porque não têm eles também direito a copiarem-se a si próprios?). Com vinte e cinco anos de estrada, não esperem que os Xutos voltem a redescobrir a música. Os Xutos são o que são e valem por isso.

Resumindo: é apenas rock n' roll e nós gostamos.
E no próximo concerto lá estarei na fila da frente, lenço vermelho atado no pulso e braços cruzados bem erguidos. Porque a todos aqueles a quem estão prestes a "rockar", nós os saudamos.


[Banda Sonora - Desejo; Mundo Ao Contrário; 2004]


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Thursday, October 07, 2004

As Vozes (com letra maiúscula) 

Celebra-se agora meia década sobre o desaparecimento de Amália Rodrigues, a Voz de Portugal, a nossa Voz.
Amália foi durante anos e será eternamente o rosto da música portuguesa. Abençoada com uma voz divinal, apenas predestinada aos escolhidos, foi ela quem personificou a saudade, esse sentimento tão português, e eternizou o fado, na altura em que este ainda era genuíno - o fado parece ter entrado num beco sem saída, um pouco como aconteceu com o punk; tudo o que apareça agora, por mais qualidade que tenha, parecerá sempre deslocado e artificial. Mas isto é tema para outra crónica.

Amália Rodrigues era aquilo a que chamo uma Voz (com letra maiúscula). Apesar deste epíteto ser atribuído a Frank Sinatra, tal não faz dele espécime único dessa categoria de músicos; fará dele, talvez, o líder de uma vasta equipa.
Com efeito, se as Vozes ao longo do tempo se reunissem numa equipa de futebol, qual constelação de estrelas, qual Real Madrid versão maré alta, esta seria capitaneada pela voz de Frank Sinatra. A escolha seria, certamente, maioritária; mas não seria a minha escolha. Apesar da sua voz ímpar, nunca fui grande apreciador daquela sua faceta de quem parece não levar as coisas a sério - e quando penso nisto, vem-me sempre à memória aquele famoso dueto em Love Me Tender, com Elvis Presley.

Por vezes, as Vozes podem ser confundidas com os cantautores. Mas as semelhanças entre uns e outros não são absolutamente nenhumas, são como a água e o azeite. É que nas Vozes, é a voz o centro gravítico da música; estes podem-se dar ao luxo de não escrever as canções; tudo o que é escrito para eles ou tudo o que roubam (leia-se pedem emprestado) a outros, parecem genuinamente deles, quando cantadas. Fazem até do sofrimento dos outros o seu.
Por sua vez, os songwriters são antes de mais, poetas. Cantam as suas histórias e passam as suas mensagens. Podem não ser os melhores cantores da cidade (alguém mencionou Bob Dylan?), mas são os melhores compositores das redondezas.

Numa entrevista publicada esta semana que passou, no suplemente semanal Y, Tom Waits perguntava a Kathleen Gomes quem procurava arrecadar de Amália, a coroa de raínha do fado. Tom Waits é também uma Voz. Talvez começasse no banco, se as vozes formassem mesmo a tal equipa de futebol. Mas é uma Voz diferente das já atrás mencionadas. E Tom Waits é também um contador de histórias.
A sua voz não faz chorar as pedras da calçada, mas nem por isso deixa de despoletar paixões. A sua voz de quem trocou a água pelo whisky, enquanto néctar da vida, é uma buzina reveladora, provando que não é necessário ser agraciado com uma voz dentro dos cânones estéticos aprovados por um juri dos Ídolos para ser uma Voz. Basta ter, não uma voz, mas A voz.
Por isso, as estórias de Waits, quer sejam sobre Carnaval, marinheiros, amor ou tartarugas, serão sempre algo superior. Serão sempre narrativas divinais, de anjos descidos à Terra sob disfarce carnal.

E se Deus descesse à Terra? Se esta suposição se transformasse num facto, Deus necessitaria de um arauto para ser a sua voz, ao dirigir-se a nós, meros mortais. Para isso, certamente recrutaria uma Voz. E essa Voz seria Johnny Cash.
O Homem de Negro não podia ser deste planeta; aquela voz gutural não podia ser humana. Ele era uma Voz sobre as Vozes. Na minha opinião, além de porta-voz de Deus, seria ainda o capitão das Vozes, versão equipa de futebol.
Johnny Cash é A Voz e um contador de histórias. A maneira como alia estes dois dons chega a ser arrepiante. Ao ouvimo-lo cantar, captamos toda a sua paixão, a sua sinceridade e o seu estado de espírito. Haverá algo mais terrivelmente credível do que Cash ao amaldiçoar Damn your eyes, quando canta Sam Hall, ou algo mais aterradoramente arrepiante do que Cash ao anunciar a vinda do Homem em The Man Comes Around?
Cash era um livro aberto quando cantava. A versão oficial diz que o Homem de Negro faleceu vítima de doença prolongada, mas os seus amigos dizem que pereceu às mãos do desgosto de ter perdido a sua esposa anos antes. Claro que esta segunda versão é a correcta; podemos atestar a sua veracidade através da debilidade emocional na voz de Cash nos quatro volumes que gravou na sua última de vida.

Todas estas linhas, apenas para introduzir o regresso de duas Vozes femininas (sim, também a Voz Tom Waits está de regresso, com o álbum Real Gone); duas Vozes que têm resistido ao passar dos anos, cada vez com mais charme, provando que as Vozes são intemporais. uas Vozes que ao longo dos decénios têm feito seus os prantos dos outros. São elas, Mariane Faithfull, com Before The Poison e Nancy Sinatra, com um álbum homónimo. Ambas recrutaram personalidades de referência em dois álbuns que merecem umas audições cuidadas.

E as Vozes continuarão a ouvir-se, fazendo-se anunciar por clarins divinos, rompendo as gerações em direcção aos legendários anais da história. Fazendo as pedras chorar e despoletando paixões.


[Banda Sonora - The Man Comes Around; American Records Vol. IV; 2002]


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Saturday, October 02, 2004

Esta tarde na Feira Internacional do Disco... 

...e agora no meu gira-discos:


E também no meu leitor de DVD's:


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