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Sunday, October 17, 2004

O álbum ou Os discos da minha vida (I) 

INTRODUÇÃO
O objectivo de um álbum é completamente diferente do de uma música.
Se uma canção procura responder aos instintos e intuitos inerentes de três ou quatro minutos de melodia, por sua vez o álbum é uma capa que tapa ou destapa o conceito da unidade formada por aquele alinhamente de músicas.
O primeiro caso de entendimento do álbum enquanto álbum e não enquanto compilação de algumas músicas, foi Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e é ainda um dos casos de maior sucesso geral. Há ainda outro caso gritante que é The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars, de David Bowie. No entanto, estes dois albuns são dois casos bastante particulares, uma vez que recorrem a desígnios fora do contexto musical.
No entanto, existem álbuns que acabam por suprir todas as lacunas de uma mera compilação de temas sem artifícios folclóricos. São álbuns que cumprem todo o objectivo de um álbum, apenas e só com os seus atributos musicais. E normalmente, são estes muitos dos discos da nossa vida!

Os discos das nossas vidas são aqueles que se colam inexplicavelmente ao prato do gira-discos; são aqueles de que não nos privamos de ouvir por inteiro, todos os dias; são aqueles dos quais fazemos questão de saber de cor todas as letras da primeira à última faixa; e são aqueles que nos acompanham por toda a vida, juntos com os álbuns perenes e adequados à estação.

Todas estas linhas apenas para introduzir um espaço, que bem pode vir a transformar-se numa crónica periódica, intitulada Os discos da minha vida, onde me proponho a dissecar alguns daqueles álbuns (é favor colocar todo o ênfase em "daqueles", quando lido).
E hoje, o álbum em causa é American IV - The Man Comes Around, de Johnny Cash.

Já aqui falei anteriormente, do meu fascínio pelo Homem de Negro e expliquei porque é ele uma Voz (com letra maíúscula) e o próprio arauto de Deus, se Este um dia descer à terra e se dirigir a nós, mortais.
Contextualizando um pouco, The Man Comes Around encerrou duas etapas na vida de Cash: a primeira, de colaboração com o produtor Rick Rubin, a qual se traduziu numa empresa de quatro álbuns (a American Collection), onde Rubin voltou a colocar Cash no topo da montanha discográfica, revitalizando a sua música; e a segunda, que encerrou a sua luta contra a doença terminal e contra o desgosto resultante do falecimento da sua esposa.
Ainda antes de começar a análise, há ainda de referir alguns pormenores relativos ao álbum. Nele, é bem audível o estado de debilidade física e psicológica de Cash, devido à fase terminal da doença e ao desgosto provocado pelo seu estado de viúvo, o que transforma o disco em algo bastante forte, sentimentalmente falando, uma vez que a dor na voz de Cash é palpável (para quem não acreditar, basta ver o videoclipe de Hurt, o single de apresentação do álbum). Outro pormenor pertinente é que American IV é, sobretudo, um álbum de covers. No entanto, como a extraordinária Voz que era, Johnny Cash recruta para si músicas de outros, dando-lhes significado e transmitindo-lhe a sua dor, parecendo que todos aqueles prantos são seus.
Posto isto, passemos à dissecação do álbum.

DESENVOLVIMENTO:

[Johnny Cash - American IV; The Man Comes Around; 2002]


O álbum inicia com The Man Comes Around. E não podia iniciar de melhor forma. Com efeito, a faixa de abertura é algo bíblico, algo grandioso, que apesar de ser apenas baseado, podia muito bem ser uma passagem da própria Bíblia. Nela, Cash personifica o tal arauto de Deus, que anuncia a sua vinda, com a sua voz de trovão. É uma música que comprova todo o seu amor por Deus e pela música.
O segundo tema é o inesperado Hurt, tema original dos Nine Inch Nails e respectivamente, o primeiro cover do álbum. Hurt é aquele tema, que para quem não sabe, passa muito bem por original de Johnny Cash. A dor com que o Homem de Negro a canta é o dobro ou o triplo da dor de Trent Reznor. E para quem ainda tem dúvidas, basta ver o teledisco.
Give My Love To Rose faz então a ponte para mais uma versão. Desta vez, é a balada lamechas de um grande sucesso de tempos idos, da dupla Simon & Garfunkel: é ela Bridge Over Troubled Waters. Cash não está sozinho - Fiona Apple acompanha-o do outro lado do microfone - mas arrebata toda a canção para si, dando-lhe pela primeira vez sentido aquele silogismo medonho da ponte sobre águas turbulentas(?).
A faixa cinco encerra um dos momentos altos do disco. Pegando numa vulgar música de Sting, Johnny Cash exorcisa um fantasma que adopta como filho legítimo, numa narração/declamação cantada de sentimentos e emoções altos. Genial!
Logo de seguida, First Time Ever I Saw Your Face apresenta-se segundo duas condições: por um lado, é a ponte para o segundo momento alto do álbum e por outro é a prova de que Cash era uma Voz ímpar, interpretando uma tradicional canção romântica, geralmente celebrizada por vozes femininas, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E chega então o segundo momento alto do disco. Johnny Cash está-se nas tintas se em 90% das vezes, as versões são sempre inferiores aos originais e volta a surpreender. Pegando de frente o fantástico Personal Jesus, dos Depeche Mode, Cash veste-o com novas roupas, que nunca lhe ficaram tão bem. E ainda faz suas, as mãos de John Frusciante.
É aqui o ponto alto do trajecto ascendente do álbum; a partir daqui, mantem-se constante, em linha recta até ao término. Primeiro, com In My Life, dos Beatles. E depois com o fabuloso Sam Hall, onde o Homem de Negro volta a descarregar toda a sua fúria que a sua voz comporta, quando grita damn your eyes (o incrível e paradoxal é que ele não precisava sequer de gritar para parecer estar a fazer explodir os próprios pulmões).
Talvez seja o rearranjo do tradicional Danny Boy, o ponto menos alto do disco, mas a parceria com Don Healey em Desperado, logo a seguir, faz esquecer possíveis percalços. E depois há Nick Cave em dueto com Cash, no original de Hank Williams, I'm So Lonesome I Could Cry - atributos demais para só por si tornarem a faixa doze memorável.
Até ao final, Cash ainda rearranja o tradicional Streets Of Laredo, canta Tear Stained Letter e termina com o festivo We'll Meet Again. Presságio? Esperemos que sim.

E a seguir só o silêncio. Nada que uma nova audição não resolva...

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