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Thursday, November 25, 2004

Primeiro estranha-se, depois entranha-se 

Foi Fernando Pessoa quem o disse, um dos maiores ícones nacionais, que muitas vezes é subvalorizado. Se colocarmos a questão em termos musicais, Pessoa seria a fusão entre a capacidade letrista de Leonard Cohen e Bob Dylan, com o vomitar da alma de Tom Waits e com o estatuto de Elvis. No entanto, estas linhas não têm o intuito de se referir ao autor da frase que intitula este texto, mas sim de se referir ao conteúdo da dita cuja.

Com efeito, apesar de não ter sido escrita referente à música, esta afirmação descritiva bem o podia ter sido. Esta é, quiçá, a mais complicada música de se descrever e/ou classificar; porque primeiro estranha-se e depois entranha-se.
É um sentimento esquisito. Aconteceu por exemplo, com o álbum debutante das Cocorosie. A primeira vez que pomos o CD a tocar no leitor, a voz de cana rachada da mana Cassidy, juntamente com o entoar de latidos e do vento, soa-nos a algo estranho. No entanto, não refutamos logo o disco, como o faríamos com qualquer tipo de lixo musical (alguém mencionou os Limp Bizkit?); há qualquer coisa que nos faz ouvi-lo até ao fim e, passado algum tempo, apesar de na altura não ter sido óbvio, tomamos consciência de que houve qualquer coisa na música que nos ficou na cabeça. E voltamos a coloca-lo no leitor e aí, a música entranha-se. Aí, a voz estridente a voz de soprano daquelas duas irmãs já entoam como uma só, como dois anjos caídos, de uma qualquer religião pagã, apologistas de uma sexualidade devassa, mas paradoxalmente pura e virgem, cujos ruídos exteriores que ao princípio soavam como estranho, agora são suspiros do fundo da alm.

Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Aconteceu-me com La Maison de Mon Reve e agora com o novo álbum dos Giant Sand, It's All Over... The Map.
A primeira audição não foi, de facto, amor à primeira vista, mas houve qualquer coisa, inconscientemente, que me fez não colocar logo o CD no monte dos proscritos. E à segunda audição, houve então o tal clique, e aquela compilação de canções começou a soar de outra forma, como que desmascaradas.
Despido o fato da estranheza, começou a entranhar-se na alma. E quanto mais o disco tocava, mais esse fenómeno ganhava consistência.

It's All Over... The Map é uma amálgama de sons que, supostamente, não deviam combinar bem juntos. No entanto, há ali qualquer coisa que refuta esta norma.
Há um terço de blues e, especialmente, country, debitada por uma voz embriagada de meio litro de whisky velho, arranhado pela mesma guitarra que compõe o outro terço, de música clássica, qual muzak de elevador, como prelúdio de momentos importantes. E depois há o outro terço, de algo indistinto; algo regurgitado da alma, como que arrancado a ferros de estrangeiros, cantado com à-vontade e sentimento, em doses iguais.
E se tudo isto já nos começa a fazer sentido, hei-lo a atacar-nos com algo que nos relembra que aquele não é um disco comum: a canção chama-se Anarchist Bolchevistic Cowboy Bundle e é um OSNI (Objecto Sonoro Não-Identificado): um desabafo punk em voz infantil, de epílogo country a avisar don't let your baby grow up to be Tolstoi.

Intenção política? Não! It's All Over... The Map é apenas um ensaio pessoal visto pelo avesso da alma e não como deviam ser vistas.
E como quem diz a verdade, não merece castigo...


[Banda Sonora - Flying Around The Sun At Remarkable Speed; It's All Over... The Map; 2004]


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