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Saturday, February 26, 2005

Demónios gritantes 

Nasceu com o nome de Jalacy Jay Hawkins e com o pé esquerdo. Era preto e grande, no meio de quatro irmãos de mães diferentes, algures no meio dos Estados Unidos. A sorte não queria nada com ele, apesar de aos 14 anos já ser campeão amador de boxe do estado do Alasca. No entanto, uma tareia descomunal fê-lo não querer sequer reconquistar o título. Anos depois, embarcava para a Coreia, com uma arma ao ombro e um capacete na cabeça. Lá, uma granada atingiu-o de perto e o regresso à terra-mãe foi antecipado. A sorte continuava arredada e nem o seu gosto pelo canto lírico parecia agirar um futuro agradável. Jalacy Jay Hawkins era "preto e pobre" e tinha que ganhar dinheiro rápido. E a ópera não chega aos tops.
Decidiu então ter aulas de canto e os caprichos do destino puseram-no em contacto com uma mulher gorda que bebia dois tipos de whisky diferentes ao mesmo tempo, num qualquer bar esquecido por Deus. Ao pé dela, um elefante tinha o diâmetro de um lápis". Disse-lhe para exorcizar os demónios, "Grita, meu lindo, grita". E ele gritou. E nasceu Screamin' Jay Hawkins.

A sua carreira musical ficou na maioria das vezes ligada ao esoterismo, ao horror e à extravagância. Quando é lembrado, normalmente são pelas suas actuações a sair de dentro de um caixão, com uma caveira enfiada na bengala, ao ritmo de explosões e fogo-de-artifício, em espectáculos de dráculas e lobisomens. È assim que devia ser recordado? Também, mas não só! Screamin' Jay Hawkins tinha uma voz fantástica, que quando gritou a mando da mulher gorda, libertou-se dos fantasmas passados; mas com o preço de se ter tornado ele próprio um demónio. Um demónio gritante, com uma voz de barítono que destrambulhava ao bom estilo avant-garde, num jazz bluesly. Ou seria num blues muito jazzy? Não interessa, era tudo música do demo.

Outro demónio gritante é Steven Tyler. Ou pelo menos, ele próprio assim se intitula. Não se sabe se assinou algum acordo com Satanás ou outro anjo errante, mas o que é certo é que a sua carreira musical esteve por um fio. No entanto, a sua voz sempre esteve lá.
Os Aerosmith foram uma boa banda. Nos resquícios da década de 70, surgiram em terras do Tio Sam com o álbum homónimo, a evocar os Stones e os Led Zeppelin. As comparações com os primeiros foram inevitáveis: havia um vocalista que também enchia o palco, um guitarrista que se punha ao microfone ao estilo de lord Richards, um baixista loiro que parecia Brian Jones. E rock n' roll. Muito rock n' roll. Numa década tiveram um interessante percurso na auto-estrada 66, mas depois o convívio apertado com as drogas deitou tudo a perder. Só nos anos 80, um inesperado dueto com um trio rap os iria reerguer. Mas o destino estava traçado para um rock patriota, por vezes a pender o mainstreem, por outras a entrar pelo pastelão. Prefiro recorda-los com Toys In The Attic, por exemplo.

No entanto, mantem-se a voz inconfundível de Steven Tyler. Não só tem estilo, como tem uma voz de demónio gritante: capaz de levantar os mortos, capaz de estabelecer contacto com o outro mundo. Uma voz promíscua, que desperta a líbido e faz o rock n' roll ser novamente a música do demo. Só por causa disso, vale a pena existirem os Aerosmith.


[Banda Sonora - Big Ten Inch Record; Toys In The Attic; 1974]

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